segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

UM CONTO PARA O FIM DO ANO...


CAMISA BRANCA DE FALSO LINHO                                                                           

Nada mais fácil do que confundir a cor branca. Camisas brancas, então, piorou. Foi o que aconteceu neste episódio que vou contar.
A mão, impaciente, buzinava e o jovem empregado da lavandaria,  atarantado, embrulhou a camisa branca de falso linho  junto com o paletó de cerimonia, igualmente branco, que então se chamava “summer”. A mão impaciente jogou o pacote no banco detrás.
Em geral, para a Camisa Branca, aquele tempo, engomado e vazio, em férias do corpo, era o seu dormir. Ficava incontáveis  dias na gaveta, guardada para as melhores ocasiões e,  quando por fim era desdobrada, o corpo limpo do seu dono  a preenchia por completo: os botões debruçavam-se nas casas e ela sentia-se repleta. Às vezes , num baile, a namorada do rapaz pincelava o colarinho de batom.  E então ela voltava para a  lavandaria que, na verdade, era  o seu melhor  programa, literalmente uma estação de águas, com direito a psicanálise, pois ali se libertava da poeira da vida. No geral ia acompanhada pelo  paletó escocês cinza, que o dono escolhera porque, sendo discreto , poderia  usá-lo mais vezes, sem que as pessoas se apercebessem disso.
Ela e o paletó tinham muitas afinidades. Iam juntos aos aniversários da família, ao cinema dos domingos, a eventos culturais e sociais .Apareciam, discretos, comportados, e a Camisa Branca olhava as suas colegas vermelhas ,verdes, amarelas ou cor de rosa, confeccionadas em novos tecidos artificiais , helanca e ban-lon, por exemplo, e sentia-se muito elegante, refinada mesmo, apesar de, no íntimo, estar consciente de que o seu linho era falso.  De qualquer modo, ela e o paletó, diante das ousadias modernosas, entreolhavam-se, digníssimos.
Frequentemente,  no arame da lavandaria, conhecia outros paletós. Muitos  deles, talvez importados, sequer a olhavam. Outro, no entanto, mais comuns, em tecido azul ou bege,balançavam-se alegremente, procurando tocá-la. Aqueles flertes, todavia, não punham rubores na  sua brancura.
Até que um dia, de sol enevoado,casualmente encontrou-se no arame com um paletó branco de corte bem diferente do seu velho amigo cinza escocês. Era um Summer e o vento agitou-lhe as mangas, que  a tocaram, como numa carícia. O Summer desculpou-se polidamente.Explicou que estava exausto, pois dançara muito na madrugada anterior. E, conversa vai, conversa vem, o novo amigo revelou que no seu bolso estavam esquecidos uns brincos de brilhante, que o seu dono retirara das orelhas da namorada. Se pudesse vê-los, deviam  estar  misturados com  confetes,  pois   aquele havia sido um baile de reveillon...
Só   quando se viu embrulhada com o Summer, descobriu que ambos pertenciam ao mesmo dono. Mas então, com que camisa havia ido ele ao baile ? Por que tinha sido exluída dessa emoção?
Dentro do papel cor de rosa da lavandaria não havia um mínimo de ar. Mas isso não importava muito, pois sentia-se feliz com a nova companhia. Possivelmente iam estar juntos muitas vezes. E já podia imaginar-se com a gravatinha preta no colarinho.
Quando o carro parou, a mão impaciente apanhou o pacote. Entraram em algum lugar barulhento. O Summer cochichou: Não é costume haver tanto barulho por aqui ...
Várias portas se abriram. Até que finalmente uma se fechou com estrondo. A mão rasgou o papel cor de rosa.  Summer foi estendido numa cadeira. Camisa estava sendo vestida  e,quando o primeiro botão espreitou pela casa, ocorreu um duplo desapontamento.O dela , pois  aquele quartinho de paredes sujas não era  o ambiente a que estava habituada. Por seu lado, o rapaz que a vestia , exclamou: Mas esta não é a minha camisa!
Entretanto, alguém bateu á porta : Depressa, Bonifácio, o movimento hoje é grande. Há muitos fregueses à espera!
Bonifácio olhou-se no caco de espelho que estava sobre o armário. Considerou, com desprezo, o colarinho da camisa. Deu um muxoxo. Mas não havia tempo para investigar a troca e resolveu vestir o paletó branco, uma vez que não tinha outra roupa à mão.
As mangas do casaco  dobravam-se em adeuses. Ele puxou-as: Como pode ser isto? Tudo trocado, ora bolas!...
Novas pancadas à portas:
- Bonifácio, é para hoje? Desse jeito você vai mal!
Era o seu primeiro dia de trabalho. Nervoso  e atrapalhado,  ao servir o primeiro freguês, derramou-lhe nas  calças  molho de peixe.   Foi posto na rua. Furioso, despiu a camisa no quartinho dos fundos do restaurante e deixou-a amassada a um canto.
No dia seguinte, o  faxineiro  encontrou-a. Levou-a para casa e disse ao irmão, que era pescador:  Dá uma lavada e fica com a camisa  para você. É boa para o mar!
Assim aconteceu. Camisa Branca viajou muitas vezes  com o pescador, até que uma borrasca fez  naufragar o precário barco que lhe pertencia. Na esperança de que o vento o salvasse, o pescador esticou a camisa numa vara, transformando-a numa vela. Ninguém sabe que rumo tomaram, ou se  aportaram em alguma praia.

Maria de Lourdes Hortas 

Recife, novembro, 1964

( Conto encontrado numa pasta entre  papéis antigos).

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