quinta-feira, 29 de março de 2012

RELEITURAS

NOTA: Escolhi estes 2 poemas , em Relógio d´Àgua , coletânea de livros que  publiquei   em 1985, e ofereço-os aos visitantes deste blog.

1.  ROSA-DOS-TEMPOS

Palavras que hoje esfolho
às esquinas do vento
hão de girar, libertas
pela rosa-dos-tempos.

Palavras que recolho
quando em silêncio grito
hão de varar distâncias
notícias do instante
que sou no infinito.
Não ditas, mas escritas
sempre as palavras voltam
sonatas de silêncio
que a quatro mãos se tocam.

Palavras em torrente
a derrubar as grades
os muros e as portas
e a fluir das caves
que hão de girar, rubras
na espiral eterna
áurea subterrânea
nascente das  cavernas
por arcos, tantos arcos
túneis e corredores
enquanto a terra gire
vale de chuva e flores:
só a palavra escrita
é realmente dita.

(in   Música dos Cravos, 1984 )

Escrito a partir de um verso da minha filha Márcia Hortas, então adolescente:"O gosto que sinto em poder explodir silenciosamente."  

2. De FLAUTA E GESTO/ 1983

ONTEM à noite, quando o silencio
do meu amado me disse que não
pensei na morte, me vi enforcarda
em cordas de guitarra ou violão.
Por mim gritei, que uma andorinha
sangrava, morta, em meu coração.
Em suas penas morria meu sonho
de vôo findo, de asas em vão.
Fui enterrá-lo sob a laje, em sono
onde semeio outra ilusão.
E me dei conta que já era outono
um prévio inverno, um findo verão.
Assim varrendo as folhas caídas
de minha vida que com tantas mortes
me pesa com o peso de cem vidas
me orvalhei de meu próprio pranto
até o amanhecer, nublado estio.
Voltei a mim, e em mim estava frio
fiz um café e me sentei num canto.
Devagarinho fui bebendo o espanto
de me aquecer com a solidão
o acorde manso, de ritmo constante
em mim batendo, firme, o coração.

                        *

Sempre que o amado                                   Mas se o amado
longe silencia                                               perto se anuncia
a vida arrefece                                              a vida se aquece
e se planicia.                                                 e se oceanía.
Então a amada                                              Então a amada
também silencia                                            é toda poesia
porque sem o amado                                     porque é o amado
seu canto fenece.                                           quem lha oferece.