CAMISA BRANCA DE FALSO LINHO                                                                           
Nada mais fácil
do que confundir a cor branca. Camisas brancas, então, piorou. Foi o que
aconteceu neste episódio que vou contar.
A mão,
impaciente, buzinava e o jovem empregado da lavandaria,  atarantado, embrulhou a camisa branca de
falso linho  junto com o paletó de
cerimonia, igualmente branco, que então se chamava “summer”. A mão impaciente
jogou o pacote no banco detrás.
Em geral, para a
Camisa Branca, aquele tempo, engomado e vazio, em férias do corpo, era o seu
dormir. Ficava incontáveis  dias na
gaveta, guardada para as melhores ocasiões e, 
quando por fim era desdobrada, o corpo limpo do seu dono  a preenchia por completo: os botões
debruçavam-se nas casas e ela sentia-se repleta. Às vezes , num baile, a
namorada do rapaz pincelava o colarinho de batom.  E então ela voltava para
a  lavandaria que, na verdade, era  o seu melhor 
programa, literalmente uma estação de águas, com direito a psicanálise,
pois ali se libertava da poeira da vida. No geral ia acompanhada pelo  paletó escocês cinza, que o dono escolhera
porque, sendo discreto , poderia  usá-lo
mais vezes, sem que as pessoas se apercebessem disso.
Ela e o paletó tinham
muitas afinidades. Iam juntos aos aniversários da família, ao cinema dos
domingos, a eventos culturais e sociais .Apareciam, discretos, comportados, e a
Camisa Branca olhava as suas colegas vermelhas ,verdes, amarelas ou cor de
rosa, confeccionadas em novos tecidos artificiais , helanca e ban-lon, por
exemplo, e sentia-se muito elegante, refinada mesmo, apesar de, no íntimo,
estar consciente de que o seu linho era falso. 
De qualquer modo, ela e o paletó, diante das ousadias modernosas,
entreolhavam-se, digníssimos.
Frequentemente,  no arame da lavandaria, conhecia outros
paletós. Muitos  deles, talvez
importados, sequer a olhavam. Outro, no entanto, mais comuns, em tecido azul ou
bege,balançavam-se alegremente, procurando tocá-la. Aqueles flertes, todavia,
não punham rubores na  sua brancura. 
Até que um dia,
de sol enevoado,casualmente encontrou-se no arame com um paletó branco de corte
bem diferente do seu velho amigo cinza escocês. Era um Summer e o vento
agitou-lhe as mangas, que  a tocaram,
como numa carícia. O Summer desculpou-se polidamente.Explicou que estava
exausto, pois dançara muito na madrugada anterior. E, conversa vai, conversa
vem, o novo amigo revelou que no seu bolso estavam esquecidos uns brincos de
brilhante, que o seu dono retirara das orelhas da namorada. Se pudesse vê-los,
deviam  estar  misturados com  confetes,  pois   aquele havia sido um baile de reveillon...
Só   quando se viu embrulhada com o Summer,
descobriu que ambos pertenciam ao mesmo dono. Mas então, com que camisa havia ido
ele ao baile ? Por que tinha sido exluída dessa emoção?
Dentro do papel
cor de rosa da lavandaria não havia um mínimo de ar. Mas isso não importava
muito, pois sentia-se feliz com a nova companhia. Possivelmente iam estar
juntos muitas vezes. E já podia imaginar-se com a gravatinha preta no
colarinho.
Quando o carro
parou, a mão impaciente apanhou o pacote. Entraram em algum lugar barulhento. O
Summer cochichou: Não é costume haver tanto barulho por aqui ...
Várias portas se
abriram. Até que finalmente uma se fechou com estrondo. A mão rasgou o papel
cor de rosa.  Summer foi estendido numa
cadeira. Camisa estava sendo vestida 
e,quando o primeiro botão espreitou pela casa, ocorreu um duplo
desapontamento.O dela , pois  aquele
quartinho de paredes sujas não era  o
ambiente a que estava habituada. Por seu lado, o rapaz que a vestia , exclamou:
Mas esta não é a minha camisa!
Entretanto,
alguém bateu á porta : Depressa, Bonifácio, o movimento hoje é grande. Há
muitos fregueses à espera!
Bonifácio olhou-se
no caco de espelho que estava sobre o armário. Considerou, com desprezo, o
colarinho da camisa. Deu um muxoxo. Mas não havia tempo para investigar a troca
e resolveu vestir o paletó branco, uma vez que não tinha outra roupa à mão.
As mangas do
casaco  dobravam-se em adeuses. Ele
puxou-as: Como pode ser isto? Tudo trocado, ora bolas!...
Novas pancadas à
portas:
- Bonifácio, é
para hoje? Desse jeito você vai mal!
Era o seu
primeiro dia de trabalho. Nervoso  e
atrapalhado,  ao servir o primeiro
freguês, derramou-lhe nas  calças  molho de peixe.   Foi
posto na rua. Furioso, despiu a camisa no quartinho dos fundos do restaurante e
deixou-a amassada a um canto.
No dia seguinte,
o  faxineiro  encontrou-a. Levou-a para casa e disse ao
irmão, que era pescador:  Dá uma lavada e
fica com a camisa  para você. É boa para
o mar!
Assim aconteceu.
Camisa Branca viajou muitas vezes  com o
pescador, até que uma borrasca fez  naufragar
o precário barco que lhe pertencia. Na esperança de que o vento o salvasse, o
pescador esticou a camisa numa vara, transformando-a numa vela. Ninguém sabe
que rumo tomaram, ou se  aportaram em
alguma praia.
Maria de Lourdes Hortas 
Recife, novembro,
1964
( Conto
encontrado numa pasta entre  papéis
antigos).
 
Belo conto, minha amiga.Tem sua marca registrada de narrativa fina e delicada.
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