sábado, 15 de outubro de 2011

LEITURAS

AS VIAGENS GERAIS DE CELINA DE HOLANDA



Viagens Gerais, poesia

Celina de Holanda

Fundarpe / Cepe

Recife, 1995, 370 pgs.



Desde  O Espelho e a Rosa ( estréia,1970), até Afago e Faca ( inédito por vários anos e agora publicado nesta coletânea), a obra de Celina de Holanda vem se construindo sobre as premissas que lhe deram origem: a luz e a sombra, o jardim e o interior, o consciente e o inconsciente, a intuição e o conhecimento. Por outras palavras: sobre o universo mágico do Engenho Pantorra, onde viveu a infância, entre as histórias dos pretos velhos e os livros da biblioteca da casa, sempre atualizada:



Chego às janelas da noite

Meus olhos buscam o que era (...)



O poema de Celina que serve de pórtico ao livro não poderia ter sido melhor escolhido, pois é também uma espécie de mapa que, à partida  para estas Viagens, desvela ao leitor  as gerais intenções das mesmas: 



Viajo pelos livros que faço

Mas sempre torno

Para  escreve-los

Onde a vida é uma menina

Chorando

Entre moitas.



A afirmativa da autora faz-nos concluir que, nela, a escrita, mais do que um mecanismo lírico de regresso ás origens, é a própria forma de subverter os limites cronológicos: escrever é voltar ao antigo cenário bucólico,



... onde havia as águas caindo

 na rampa da cachoeira

parecendo lençol branco

 por entre espumas fugindo(...)

 passando rente na mata

 onde gritava o pavão (...) pág.95.



Nesse alumbramento das águas despencando em vertigem, abismo de espuma fugitiva, a poesia a tocou, escolhendo-a para a sina de dizer os sentimentos. Na verdade, a poesia chegou à vida de Celina com a naturalidade com que, pela manhã, chegavam os pássaros às  varandas da casa da infância. Varandas que, de resto, também se abriam para o poço fundo das suas inquietações:



Um espelho e seus dois lados

Réptil e pássaro

O que somos.(...)

Para onde essas rotas de vôo

Se abrem e se apagam?

Dessa vivencia telúrica da zona da mata pernambucana e, por certo, da convivência com o chão de barro plasmável ,no qual moldou seus versos, lhe ficou o gosto pelo simples e essencial:



Que tudo em si lembrava

Madressilvas

Malvas cheirosas

Verdes moitas

Manhãs

Frescor e orvalho.



Luminosa, com o despojamento e a grandeza das pequenas coisas, a poesia de Celina de Holanda brota com a naturalidade das fontes -  espontaneidade    que não é fácil alcançar. Um poeta espontâneo português, Manuel da Fonseca, confessa: ”Ser espontâneo dá-me muito trabalho”. Isso porque, a  simplicidade do texto poético não se confunde com pobreza ou acaso. Na  leitura desta recolha da obra de Celina, percebe-se que ela conseguiu harmonizar a sensibilidade e a percepção com um sexto sentido estético, equipamentos que, mesmo fazendo parte da bagagem genética do poeta, só se aprimoram com leitura e exercício da escrita, somados ao sábios filtros da vivencia e do tempo.

Quanto à  temática da   sua  poesia, o título de um dos seus últimos livros  já referido – Afago e Faca – é  metáfora e síntese. Sem dúvida, a trajetória da poetisa tem se firmado sobre essas duas bem definidas vertentes. Solidários,

 o tema social ( faca) e o tema afetivo ( afago) se entrecruzam continuamente. Assim, sem conseguir compactuar com a injustiça social, ou com o desconforto emocional diante de uma realidade que agride os seus princípios cristãos, Celina toma a palavra, com energia e veemência:



Ouço o povo numeroso de Deus.

(...) Ouço as portas.

É o clamor do povo de Deus, abrindo-as. (pág.190)



Todavia, a  meu ver, a  grande força da sua poesia acontece nos poemas de tom elegíaco: aí cresce e se dilata, despindo-se do circunstancial e ultrapassando  limites geográficos  e temporais:



Tudo já aconteceu. Coloca a insígnia

(primado do sinal) sobre o meu peito

E um penso de amor sobre esta chaga.

Escuta o pássaro

Rolando

Como um jornal velho, rasgado,

A asa da ascensão cortada. Sua beleza

Guardarei sobre o meu corpo

Como um fruto

A que se tira a casca.

Mas

Dá-me um pouco da tarde onde ficamos.



(Publicado no jornal literário O PÃO, Fortaleza/Ceará, junho,1996)


Nota: Celina de Holanda nasceu no Cabo, Pernambuco, em 1915 e faleceu no Recife em 1999.