sábado, 11 de junho de 2016

Crônica lirica de São Vicente da Beira


Ao sul, no regaço da Gardunha
imerso no acalanto dos pinhais
aconchega-se um lugar de maravilha
que resiste ao tempo e aos vendavais:
São Vicente da Beira, vila antiga
de foral e glorias medievais.

Reza a lenda que há, nas redondezas
ruínas de um castelo, ou cidadela
vestígios de história e de grandezas
que se guardam ali, de tempos mouros
onde um gato de pedra é sentinela
de séculos, de estrelas, de tesouros.

Na verdade esta vila foi fundada
por Afonso Henriques, rei primeiro
em paga aos favores de um valente
castelão quando aos mouros combatia:
são heranças que vêm desde sempre
terra da melhor cepa e melhor gente.

Tanto assim, sendo terra de valia
com insígnias e honras assinalada
foi então consagrada a São Vicente
e à capital do reino irmanada
na heráldica, também no padroeiro
de Lisboa pequena foi chamada.

Se episódios de infâmia e de amargura
a cronica vicentina atravessaram
saqueando-lhe honras e foral
esses contos e cantos de tristura
anais e pergaminhos não levaram
nem o orgulho da vila medieval.

Casario de pedra onde as heras
testemunham séculos de vida
no percurso de tantas primaveras
por rotas de chegada e de partida:
aqui um chafariz nos mata a sede
além uma ribeira se desvenda.

os brasões da história vicentina
encontram-se na pedra eternizados:
nos solares, nas fontes, nas esquinas
dão-nos conta de gentes e de fados.
E os sinos das igrejas em canto novo
contam contos dos feitos deste povo.

Na praça o capitel do Pelourinho
assinala raízes ancestrais
pássaro, escudo, barca, cruz florida
resistindo ao tempo e aos vendavais:
São Vicente da Beira, vila antiga
de foral e glorias medievais.

( in Cantochão de Todavia-  coletânea publicada pelo GEGA, São Vicente da Beira/2005)

Faz parte de POESIA REUNIDA DE MARIA DE LOURDES HORTAS,
livro virtual , editado pela Panamerica Nordestal/Recife,  a ser lançado em agosto próximo.

FONTE DE PÁSSAROS



Alfombra macia de luar e pétalas
assim por certo tua pele
onde me deitaria
abandonada como no chão da infância.
Enche-se de
abelhas
minha alma.
Ao longe os sinos.
Ao longe os barcos.E eu em ti
sozinha às portas do baile
ouvindo os boleros que retornam
esplendor, névoa, perfume, arrepios
vaga-lumes
sedas.

E eu sem ti
enquanto as ondas
uma a uma regressam - inquietas águas.

E eu aqui
enquanto o vento levianamente assobia
invadindo frestas da janela
onde ninguém espero.

E eu aqui
desfolhando as páginas do diário
como se desfolhasse margaridas e esperanças.

De onde nasce este desassossego rutilante
fonte de pássaros
em meu coração?

Maria de Lourdes Hortas

( in FONTE DE PÁSSAROS,1999)


sexta-feira, 25 de março de 2016

NOVA JERUSALÉM UM PALCO DE SETE HECTARES



(publicado na revista ITINERÁRIO, Coimbra/ Portugal , 1969)

Fim dos anos sessenta, no Nordeste do Brasil.
No roteiro do turista que passe por estas plagas , uma visita á cidade de Nova Jerusalém é obrigatória.
Saindo do Recife, ele atravessará a Serra das Russas, passando por Gravatá ( conhecida como a  Suíça pernambucana) e por Caruaru, terra do famoso  ceramista mestre Vitalino, que modelou os tipos característicos da sua terra. Mais alguns quilômetros de cactos e mandacarus e sentirá a fusão do calor e do silêncio, num mundo   exótico  e surpreendente. Pedras agudas formam os montes. A terra é seca e arenosa. Arbustos são a única nota verde-cinza  e o sol cai à vontade sobre toda a paisagem, sem sombra que o detenha: eis Fazenda Nova, lugar cujo mérito, até alguns nos atrás, era possuir águas alcalinas.
O  turista decepciona-se: então, percorreu léguas e léguas para encontrar uma estaçãozinha de águas e um hotel cuja única beleza consiste numa piscina onde andorinhas descem para se banhar?
Prossegue viagem. Envereda  por caminhos de cabras. Chega à muralha de Nova Jerusalém  e contempla a concretização de uma utopia.

A UTOPIA DE PLÍNIO PACHECO

Foi Epaminondas Mendonça quem jogou a primeira semente   do sonho. Leu numa revista que, numa vila da Baviera, durante a Semana Santa, a Paixão de Cristo era encenada nas ruas pelos seus habitantes. A ideia de fazer algo parecido em Fazenda Nova surgiu e não o abandonou. Assim, em 1950, nas tortuosas ruas da pequena cidade, aconteceu   a primeira representação do Drama do Calvário, com um elenco heterogêneo, composto pela família do próprio Epaminondas, e por lavradores  e  carregadores de água da região.
A encenação alcançou um realismo impressionante. Repetida nos anos seguintes, logo se tornou tradição. E, em 1962, mil e duzentos espectadores invadem Fazenda Nova, deslocando-se atrás dos atores que ressuscitam a epopeia cristã.
Já então um plano fantástico se delineava na mente de Epaminondas: reconstituir uma Jerusalém semelhante o mais possível à da época de Jesus, com o objetivo de dar ao espetáculo condições de máxima realidade.
O homem capaz de se embrenhar nessa aventura teria de ser um visionário ou um romântico, um bandeirante ou um bravo. E ele surgiu na pessoa de  Plínio Pacheco : casando-se com uma filha de Epaminondas Mendonça,  logo abandonou a farda da força Aérea Brasileira, despediu-se do barulho das redações dos jornais e foi morar em Fazenda Nova.

DO PROJETO À REALIDADE

Adquirindo o terreno de 70.000m2 ( um terço da área murada da velha Jerusalém), cactos e pedregulhos foram dando lugar a edifícios e casas no estilo da época de Cristo. Com base em pesquisas históricas e plantas feitas, entre outros, por Ana Gonçalves, Walter Macedo, Frederico de Holanda, Ubirajara Galvão e pelo próprio Plínio Pacheco, o projeto que parecia irrealizável foi se transformando em sólida realidade de granito. No momento ( 1969) construíram-se já os palácios de Asmoneus e  o de Herodes, o Forum de Pilatos, o templo, o tribunal de Caifás, o Cinédrio e o cenáculo. Ao lado deles, surgiram os arruados da Via sacra e, nos arredores, réplicas do Monte das Oliveiras, Fonte das Virgens e  Santo Sepulcro.
Este palco de sete hectares – hoje o maior palco ao ar livre do mundo – será fechado por uma muralha de pedra bruta, com sete portas, das quais, uma já concluída, serve de entrada para o recinto.
Plínio Pacheco, que passa o dia numa das casas do arruado da Via Sacra, recebe o visitante,  oferece-lhe água e sucos,  e tem gosto em contar a história de Nova Jerusalém.
Foi aí que me recebeu e  me contou tudo o que escrevo neste texto, explicando que os edifícios construídos não servirão  apenas como palco do grandioso espetáculo anual. Em breve, periodicamente, ali acontecerão  festivais de teatro grego, de dança, de canto coral, de cinema. Também  pretende movimentar cursos, conferencias e exposições. Tudo isso visando tornar Nova Jerusalém um centro atuante de cultura, dinamizado por uma colônia de férias, que aproveitará as próprias casas e palácios da cidade-teatro, propiciando a artistas, jornalistas e gente ligada à cultura uma hospedagem paga, em parte, com exposições de seus trabalhos e promoção de cursos e conferencias.
Por outro lado, o aspecto social não foi esquecido: atualmente uma escola para crianças funciona no palácio de Asmoneus, mas, no futuro, serão instaladas escolas artesanais e de alfabetização de adultos.

O ESPETÁCULO PROPRIAMENTE DITO
Desde aquela representação despretensiosa de 1950 até hoje, o espetáculo cresceu muito. Nele colaboram centenas de pessoas, desde técnicos, atores, um coral de 50 vozes, um conjunto de danças clássicas e extras requisitados entre os habitantes da cidade. Os figurantes, cerca de quinhentos, envergam um guarda-roupa especialmente desenhado e confeccionado para a peça.
O desenvolvimento das cenas tem início na quinta-feira á noite, com o Sermão da Montanha. Os espectadores, por 3 horas, seguem os atores e os extras e a eles se misturam, no Templo, no Cenáculo, no Horto, no tribunal de Caifás.
Na sexta-feira, também à noite, o espetáculo prossegue, desde o Forum de Pilatos até o Calvário, onde se assiste, num ambiente trágico, à crucificação de Jesus, terminando com a grandiosidade da ressurreição.

CONVITE
Quando passar pelo Recife, mesmo que não seja época de Semana Santa, não deixe de atravessar o agreste pernambucano para   conhecer a Nova Jerusalém. Lá encontrará um homem com pele de bronze e pulso de ferro. De bermudas e chapéu de palha, confunde-se com os operários que, indiferentes à inclemência do sol, com suas ferramentas primitivas, arrancam da pedra os capitéis do sonho: trata-se de Plínio Pacheco, uma espécie de profeta moderno, que lhe abrirá a sua Nova Jerusalém, exemplo de persistência, de fé e de milagre.


Nota da autora: da época em que o artigo acima foi escrito, até hoje, muita coisa mudou em  Nova Jerusalém. Por exemplo: atualmente o espetáculo  ocorre num só dia, repetindo-se de quinta a domingo; em geral  tem como ator principal um astro das novelas da  TV, que se renova todos os anos. Abaixo , como atualização, transcrevo  algumas informações, recolhidas no  site  de Nova Jerusalém.

NOVA JERUSALÉM NO SÉCULO XXI
Constituída por nove palcos, em uma área de 100 mil m², cercada por uma muralha de 3.500 m e 70 torres, Nova Jerusalém corresponde a um terço da Jerusalém original, onde Jesus viveu seus últimos dias.

Idealizada e construída por Plínio Pacheco, a cidade-teatro está localizada no distrito de Fazenda Nova, no município de Brejo da Madre de Deus, a 180 km do Recife, capital pernambucana.

Assistido por mais de dois milhões e meio de pessoas, com um público médio diário de 8.000 e conseguindo atingir a marca de 72.000, no aniversário de 40 anos, o maior teatro ao ar livre do mundo encanta turistas nacionais e internacionais pela estrutura e semelhança com a Judéia dos tempos da dominação romana.

Os palcos reproduzem os cenários naturais, os arruados, o Palácio de Herodes, o Fórum de Pilatos, o Templo de Jerusalém e o Cenáculo, constituindo uma obra monumental. Tudo é grandioso, encantador e inesquecível.

O requinte dos detalhes, a beleza plástica e a qualidade impressionam o público que, a cada ano, lota os espetáculos.


OBS: in NOS BASTIDORES DA POESIA ( livro inédito, reunião de textos críticos e outros temas de Maria de Lourdes Hortas)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

DIÁRIO DAS CHUVAS



Havia um pote de barro no quintal da infância. Da altura dos meus seis anos, sua boca media-me a circunferência da cabeça. Caramujos e lesmas se abrigavam na camada de musgo que o fixava ao chão.Pardais e andorinhas, pousando-lhe nas bordas lisas, vinham mirar-se em suas águas. A avó providenciava para que o pote jamais ficasse vazio.No inverno era mais fácil: a chuva do beiral fazia-o transbordar.Mas no verão tornava-se necessário despejar-lhe dentro vários cântaros, um para cada dia de estio. Ao relento, espectador de todas as estações, aparava moedas de sol, estilhaços de relâmpagos, farrapos de neve, pingos de orvalho e lua cheia. Servia para muitas coisas aquele pote:sua água regava as dálias e a salsa dos canteiros. Ali debruçada, tardes a fio  inventei cantigas. Ecoando cântaro a dentro, me parecia muito linda a minha voz, enquanto para mim mesma cantava, sentindo pulsar nas têmporas o coração, o cheiro do barro molhado e as cintilações dos astros guardados lá no fundo me entontecendo. Ao verter a alma naquele caleidoscópio de água cristalina, sem saber estava descobrindo a poesia.

                                                        Maria de Lourdes Hortas

(texto extraído da novela Diário das Chuvas, cap.III. Editora Bagaço, Recife/1995)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

ACERCA DO LIVRO SOLIDÕES DA MEMÓRIA DE DALILA TELES VERAS




  a memória da infância
 é a memória possível
 ( e só à poesia cabe recriar)
             
             Dalila Teles Veras
                                                                                       

Dalila Teles Veras nasceu na Ilha da Madeira em 1946, mas veio para o Brasil, acompanhando a família aos onze anos de idade. Atualmente vive em Santo André - SP. Sem dúvida, trata-se de uma das  mais significativas  escritoras da literatura  lusófona contemporânea, sobretudo porque, sendo imigrantes, pertence à literatura de duas pátrias.
Pela  Alpharrabio Edições, que comanda,   publicou recentemente (  2015)  o livro Solidões da Memória, onde está patente a  condição de quem, como ela muito bem diz nas anotações finais,” ter duas pátrias é como estar em permanente estado de exílio”. 
O título do livro foi inspirado por  um verso de Raul Bopp , citado nas epígrafes iniciais: Saudade é uma revivescência/Solidões da Memória/ coisas que ficaram do outro lado do mar.  
Além do poeta modernista, muitas das afinidades literárias da autora desfilam nas epígrafes  que abrem todos os seus poemas: Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Guimarães Rosa, Drummond, e tantos  outros altíssimos nomes. Ao nos revelar os padroeiros  da sua poesia, Dalila confirma que todos os poetas se constroem  não só da sua vocação e sensibilidade, mas de tudo o que leem e vão absorvendo, conscientemente ou não, ao longo do seu itinerário existencial.
Neste memorial, Dalila Teles Veras dá relevo  ao mundo da infância, lugar de impossível regresso:
O regresso
(ainda que da memória seja
o mergulho
vertical e fundo)
é paz impossível.
(in  A Ilha à minha porta amarrada)
 Forte e densa, tecida com a   exatidão das palavras essenciais,  assim é a poesia de Dalila Teles Veras, de contido sentimento , como contida foi a sua Educação pelo silêncio (pg. 23):  
“Rosto vincado/palavras poucas/a avó (...) em silêncio(...) 
as palavras inauditas(...)
em silencio, celebrávamos/o pacto de sangue/
 na pedra firmado, código/para enfrentar sortilégios.”
Esse código de silencio, para enfrentar sortilégios me parece ser a chave da poesia de Dalila Teles Veras. Escassez descrita no poema do mesmo título:
consumo escasso
diversão escassa
existir escasso (...)

Ecos de escassez que , de resto, marcam a sua escrita:
 (...) Na austeridade da arca
 a casa
 reduzida ao essencial.
(in  Bagagem )

No final do livro Dalila nos revela a sua Caderneta de Anotações, datadas de maio de 2012, por ocasião de uma viagem à Ilha da Madeira. Ali encontramos certamente muitas das matrizes dos poemas de “Solidões da Memória”. Todavia, mais do que nessas breves anotações, sentimos  que os  “ rizomas”  da sua profunda  insularidade , ela os foi buscar  no inominável espaço onde guarda as cicatrizes e pegadas da sua história.
Recife, fevereiro, 2016
Maria de Lourdes Hortas
------------------------------------------------------------------------
 CONFIDÊNCIA DA MADEIRENSE
                                                           Dalila Teles Veras
                                      
                                      Alguns anos vivi em Itabira.
                                        Principalmente nasci em Itabira.
                                        Por isso sou triste,
                                        orgulhoso: de ferro.
                                                   Carlos Drummond de Andrade
alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(de solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar

da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
                             rejeita

a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
                    e das vertigens
encordoamento
       do que não parecia lembrado
                     mas é
a memória do que não foi
                   mas poderia
e sequer dói