segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

HISTÓRIA DE NATAL




Com alvo cendal, Maria coberta.
- Acorda, Maria - José a desperta.

O burrinho-monge
paciente aguarda.
- Acorda, burrinho - José o encilha.
As heras e o musgo lhe arranca do alforge.

Põem-se a caminho  Maria e José.
Procuram um longe para descansar.
Há tantos Natais procuram um longe:
Um Deus quer nascer e não há lugar.

Outra vez a gruta emerge e degela.
os pastores, cândidos, ocupam nos montes
o lugar de sempre:
à espera do Anjo
que desce da estrela...

Seguem os viajeiros
Maria e José:
procuram um longe
para descansar.

Os homens fecharam as portas do mundo:
um Deus quer nascer
e não há lugar.


( releitura de um poema publicado em Fio de Lã,1979/Recife

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

VISITA À CASA DA MINHA AVÓ FELICIDADE



Em 1965, depois de concluir o curso de Direito pela UFPE, parti para Lisboa, a fim de receber o prêmio do Secretariado Nacional de Informação pelo meu primeiro livro,  Aromas da Infância, publicado pelas Edições Panorama.
Entretanto, já que estava em Portugal, decidi viajar a Trás -os- Montes, para visitar minha avó paterna.
Fiz uma pequena mala,  com apenas o necessário para três dias. A viagem  foi cheia de peripécias. Na estação de Santa Apolônia peguei o comboio matinal com destino ao Porto.  Lá , tive que descer e apanhar outro trem, desta vez até a cidade da Régua. Para colocar e tirar a mala do bagageiro, que eu não alcançava, tinha de pedir ajuda. O meu sotaque trazia bom humor aos cavalheiros , que  sorriam e me socorriam. Na Régua comprei bilhete para Vila Real, entrando num comboio pequenino, Maria Fumaça autêntico, com bancos rangentes, de estrutura em ferro e almofadas altas, cobertas com panos bordados nas cabeceiras.  Sentei-me ao lado de um jovem, agasalhado na tradicional capa negra de estudante. Logo soube que cursava Direito em Coimbra e ia passar uns dias em casa : desta vez não tive a mínima dificuldade com a minha pequena mala.
Chegando a Vila Real, procurei um táxi   e logo cheguei à aldeia de Tojais, terra do meu pai. Avó Felicidade,  já avisada da minha chegada, tinha preparado um quarto para mim  e recebeu-me com expressão  indefinida, entre desilusão e alegria. A decepção, disse-me ela mesma   depois,  devia-se à minha apresentação simples e despojada. Era fim de abril, eu usava um vestido de lã de xadrez, que minha mãe fizera, depois de, no Recife, dar voltas à cidade  procurando  um tecido quente. Em Lisboa eu havia  comprado um casaco esporte, de feltro  verde escuro, muito quentinho.Sentia-me bem dentro dele, era  o meu melhor agasalho. Calçava  botas de cano curto e salto baixo. Não usava joias, apenas o anel de formatura e talvez um fiozinho de ouro no pescoço, invisível debaixo da roupa.
Vovó esperava uma senhora doutora à moda portuguesa, vestida  de saia e casaco, como lá se dizia, um  tailleur clássico, com   blusa de seda, colar de pérolas, casaco comprido, saltos altos, brincos nas orelhas, enfim, uma dama de impor respeito, à antiga moda portuguesa.
Eu contrariava esse figurino. Daí a desilusão da família da aldeia, já esperando os comentários desairosos da vizinhança.
O marido da tia Alzira, única irmã do meu pai , foi muito simpático, e os meus primos, Fernando mais ou menos da minha idade e  OSdois mais novos, Luís e Francisco,  cercaram-me sempre, do início ao fim da minha visita. Havia três primas mocinhas, Prazeres, Conceição e uma xará, Lourdes, mas essas ficavam por casa, não me acompanhavam aos passeios pelos campos naqueles radiosos e ensolarados dias de primavera.
 O ponto alto da visita foi o domingo. Havia uma festa no povoado, com  bailarico  na eira. Os meus primos apressaram-se em me convidar. Foi uma tarde inesquecível, dancei sem parar,  não só com os primos, mas  com outros rapazes da aldeia, que  disputavam entre si uma dança com a menina do Brasil. De volta a casa, minha avó não se conteve: uma senhora doutora, que não se dava o valor, a dançar na eira com lavradores…Falou também da minha aparência simples e  imprópria  na minha condição…  E foi aí que eu soube da desilusão que lhe dera  à chegada.
Voltei para Lisboa no dia seguinte, refazendo todo o percurso. Ao me despedir de vovó Felicidade, já com a minha bagagem na mala do táxi, ela lembrou-se de me oferecer  uma sacola  de rede, dessas  que  então se usavam, rede de náilon, e ,dentro  dela, um pacote de papel com nozes .
- Não precisa  se incomodar , Vovó…
-Leva filha, são ótimas essas nozinhas…
Como recusar?
Na estação de Vila Real fui informada que o comboio para a Régua estava atrasado.  Eram cerca de dez horas e o trem só chegaria por volta do meio dia. Sentei-me à espera num banco da gare, a malinha ao lado, a bolsa a tiracolo e o bendito pacote das nozes na mão. Estava frio. Depois de alguma relutância, pois nunca entrara sozinha num restaurante, decidi ir até o Café da estação, para  matar o tempo e tomar alguma coisa que me aquecesse,  talvez um chocolate quente   … Entrei devagar, querendo passar despercebida, o que não consegui, pois a porta rangeu e não havia uma única mulher no recinto. Todos os homens se voltaram , olhando-me  sem a mínima cerimônia.  Sentei-me na mesa mais próxima  da porta, ainda cheia de cautelas, levantando a cadeira,para não   a arrastar, pousando a mala, tudo com o maior cuidado, para não chamar a atenção. Foi aí que, pousando o pacote das nozes na cadeira ao lado da minha, o  dito cujo rebentou, espalhando nozes para todos os lados. Foi uma desordem geral, todos abaixados, nozes vão, nozes veem, e entregando-as  para mim, e eu morta de vergonha, tentando ajeitar a pequena sacola, enfim, uma cena de comédia, que nunca  esquecerei.

(Capítulo do  meu livro de memórias As Casas do Destino, ainda não concluído.)













quinta-feira, 29 de março de 2012

RELEITURAS

NOTA: Escolhi estes 2 poemas , em Relógio d´Àgua , coletânea de livros que  publiquei   em 1985, e ofereço-os aos visitantes deste blog.

1.  ROSA-DOS-TEMPOS

Palavras que hoje esfolho
às esquinas do vento
hão de girar, libertas
pela rosa-dos-tempos.

Palavras que recolho
quando em silêncio grito
hão de varar distâncias
notícias do instante
que sou no infinito.
Não ditas, mas escritas
sempre as palavras voltam
sonatas de silêncio
que a quatro mãos se tocam.

Palavras em torrente
a derrubar as grades
os muros e as portas
e a fluir das caves
que hão de girar, rubras
na espiral eterna
áurea subterrânea
nascente das  cavernas
por arcos, tantos arcos
túneis e corredores
enquanto a terra gire
vale de chuva e flores:
só a palavra escrita
é realmente dita.

(in   Música dos Cravos, 1984 )

Escrito a partir de um verso da minha filha Márcia Hortas, então adolescente:"O gosto que sinto em poder explodir silenciosamente."  

2. De FLAUTA E GESTO/ 1983

ONTEM à noite, quando o silencio
do meu amado me disse que não
pensei na morte, me vi enforcarda
em cordas de guitarra ou violão.
Por mim gritei, que uma andorinha
sangrava, morta, em meu coração.
Em suas penas morria meu sonho
de vôo findo, de asas em vão.
Fui enterrá-lo sob a laje, em sono
onde semeio outra ilusão.
E me dei conta que já era outono
um prévio inverno, um findo verão.
Assim varrendo as folhas caídas
de minha vida que com tantas mortes
me pesa com o peso de cem vidas
me orvalhei de meu próprio pranto
até o amanhecer, nublado estio.
Voltei a mim, e em mim estava frio
fiz um café e me sentei num canto.
Devagarinho fui bebendo o espanto
de me aquecer com a solidão
o acorde manso, de ritmo constante
em mim batendo, firme, o coração.

                        *

Sempre que o amado                                   Mas se o amado
longe silencia                                               perto se anuncia
a vida arrefece                                              a vida se aquece
e se planicia.                                                 e se oceanía.
Então a amada                                              Então a amada
também silencia                                            é toda poesia
porque sem o amado                                     porque é o amado
seu canto fenece.                                           quem lha oferece.


domingo, 29 de janeiro de 2012

PASSEAR EM PORTUGAL

( Sugestões para viajantes que não conhecem este belo país)

Geralmente os turistas brasileiros  que passam por Portugal  ou  vão a caminho das grandes capitais européias , ou  já estão regressando de um tour. Via de regra, como  já estão por ali, aproveitam para conhecer Lisboa e arredores,  tirando fotos e acrescentando  mais um item  ao seu diário de viagem.
Visitam, então, os pontos turísticos obrigatórios de quem desembarca pela primeira vez na capital portuguesa. Vão  ao Mosteiro dos  Jerônimos,  de estilo manuelino, que deslumbra qualquer turista, pela beleza do rendilhado das colunas e dos pilares, a abóbada lançada como se fosse o bojo de um navio suspenso ao contrário, num milagre de arquitetura , inexplicável para os leigos. No roteiro , aproveitam para se  deliciar com  os famosos pastéis de Belém  e depois  dão um pulo à Torre do mesmo nome, de onde, segundo consta, partiram as caravelas de Cabral rumo ao  Brasil. Verdadeira maravilha de joalheria em pedra, a Torre de Belém lembra  contos de fadas, com suas misteriosas salas sobrepostas, guaritas,  varandins e   subterrâneos.

Quem  gosta de museus, tem muitas opções. Imperdíveis são  o de Arte Antiga ( que já se chamou Museu das Janelas Verdes)  e o Museu da Fundação Calouste  Gulbenkian.

Mas há outros pontos obrigatórios em Lisboa: o Castelo  de São Jorge, por exemplo. Fortaleza de onde se tem uma visão panorâmica da cidade,  foi testemunha de muitas batalhas,  por onde passaram visigodos, romanos e mouros e está cercado por belos jardins, onde habitam  pavões  e cisnes .

Quanto à  Lisboa  noturna, convida a  romaria por casas  de fados e  restaurantes típicos, com  bons  petiscos de bacalhau ou chouriço,onde se pode beber  um copo  de tinto ou sangria ( refresco de vinho , água,  laranja e açúcar).  Feito o roteiro noturno por Alfama e Mouraria, após ter passado pelo Terreiro do Paço,  Rossio  , Avenida da Liberdade e Parque Eduardo Sétimo, qualquer iniciante  nos caminhos  de Portugal  se dá por satisfeito e volta ao Brasil acreditando piamente que conheceu a santa terrinha dos seus antepassados.

No entanto, como diria o antigo poeta , trata-se de  ledo engano.
Portugal não é só  Lisboa. Mesmo que o visitante tenha conhecido os arredores da capital  - a linha do Estoril até Cascais - ainda ficou muita coisa para ver na periferia lisboeta.   De outra vez , será interessante ir a Sintra, lugar de magia e sonho.  Habitada desde a pré-história , foi pouso de romanos, que a chamaram de Cyntia (Lua) , de onde  se deriva  Sintra, denominação que tem tudo a ver com as celebrações e ritos lunares da  cultura romana. Com suas misteriosas  quintas particulares, seus jardins  sombrios, seus castelos e palácios, esta cidade  serrana tem restaurantes e pousadas que convidam a ficar. Cantada e decantada através dos tempos por prosadores e poetas, Sintra, segundo consta, parece ser um lugar único, devido às suas circunstâncias climáticas e paisagísticas. Além dos  romanos,também os mouros a habitaram, edificando, inclusive, um belíssimo castelo em ponto estratégico, e imprimindo a sua passagem em várias outras edificações.

Todavia,  o roteiro que até aqui referimos, dá  apenas uma breve amostra do  perfil de Portugal. Na verdade, para conhecer este pequeno  porém múltiplo país, faz-se necessário enveredar pelo seu interior, surpreender suas vilas e aldeias, conhecer sua gente hospitaleira, percorrer suas estradas sem pressa, escolhendo o percurso de acordo com o estado de espírito   e com o clima. Se o tempo for bom, com sol fora e dentro da gente, é tempo de ir ao Algarve, quer no tempo das amendoeiras em flor , quer no verão, quando   por lá aportam turistas do mundo inteiro.  Muitas são as localidades  e praias a visitar. Um ponto obrigatório é, certamente,  Vila Real de Santo António, cidade grande, com todas as vantagens e desvantagens  da civilização, construída pelo Marquês de Pombal, que tentou repetir a baixa lisboeta. Nos arredores, ruínas da vila romana de Milreu, das mais completas que se encontram em Portugal.
Aliás,  ruínas romanas é o que não falta pelo país afora. No Alentejo, uma das mais fascinantes províncias portuguesas, há monumentos valiosos, como a aldeia de Monsaraz, onde se encontram reminiscências de um circo romano. E, em  Évora, em pleno centro urbano, as colunas do Templo de Diana.

Quem gostar de arquitetura mourisca, vai se apaixonar pelo Alentejo, com suas aldeias  e vilas branquíssimas, de chaminés tipicamente árabes. Outra riqueza artística alentejana está nas igrejas, com importante policromia de azulejos.

Ainda no campo da arqueologia, perto de Coimbra está Conímbriga,  ruinas monumentais de uma cidade que deve ter sido importante e bela.
E por falar em Coimbra, passando por lá, é bom conferir se ainda é “ a capital do amor em Portugal”. Por todos os lados é possível  ver poemas inscritos nas paredes. Perto de Coimbra, vá conhecer duas valiosas peças arquitetônicas : os mosteiros de Batalha e Alcobaça.

Fundado no século XII pelos monges de Cister, em Alcobaça  se encontram  os túmulos de D. Pedro I e de Inês de Castro, verdadeiras obras-primas da  escultura gótica em Portugal, cuja construção se situa no século XIV. Uma curiosidade do  velho e robusto mosteiro  é a sua  cozinha: atravessada por um braço de rio, conta a lenda que, por uma abertura no chão , os monges da Idade Média pescavam diretamente para as frigideiras.

Quanto ao mosteiro da  Batalha,  foi mandado edificar por D.João I de Portugal  como agradecimento pela  vitória na Batalha de Aljubarrota. É exemplo da   arquitetura gótica portuguesa, ou estilo manuelino. Suas rendilhadas arcarias desafiam a opacidade da pedra, que por vezes parece transparente. 
No norte de Portugal, região do Douro, é obrigatório conhecer  o Porto,  sua capital,  cidade das famosas caves do vinho que tem o seu nome. O Porto é para amar e jamais esquecer, descobrindo-o devagarinho,  caminhando a pé, rumo à Ribeira.
Depois de tanta arte e cultura, meninos, vamos ao vira! Quem gosta de festas populares,  e ainda melhor se  for verão, precisa ir ao Minho, encontrar feiras e  romarias. O  Minho  está perto da Galiza, na Espanha. Das cidades minhotas, vá a  Braga, a Roma portuguesa e depois  siga para  Valença  (já na fronteira com  a espanhola Tuy), onde tem de   percorrer  o centro histórico, cidade amuralhada, de sombria beleza medieval, com ruas estreitas abraçadas por arcos. 
O viajante romântico gostará de se embrenhar pelas aldeias, que se encravam nas serras, quer nas Beiras, quer em Trás –os-Montes. Nessa peregrinação lírica, há  que pernoitar numa pousada provinciana, comer sopa de legumes com pão caseiro, um bom queijo de ovelha com vinho da adega, coisas que ainda é possível saborear nesses recantos singelos e  castiços.Em momentos assim, poderá sentir-se como um personagem de Eça de Queiroz,   o Jacinto, por exemplo, do romance  “A Cidade e as Serras.”
Ainda no capítulo das  serras,  se puder, vá se extasiar com a paisagem  do Gerês,  que tem as cores impressionistas das melhores telas de Gauguin ou Van Gogh.  Aí faça uma pausa, preparando-se para o regresso. A  Serra do Marão, em Trás-os-Montes, lembra a aurora da terra, face rude de pedra, ainda presente. Dessa região era o poeta Miguel Torga. No silencio  daquelas paragens, ouça-o dizer:
“É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente.”


Texto de Maria de Lourdes Hortas, Publicado no Jornal do Commércio, Recife-PE, coluna TURISMO,10/02/91.