quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

DIÁRIO DAS CHUVAS



Havia um pote de barro no quintal da infância. Da altura dos meus seis anos, sua boca media-me a circunferência da cabeça. Caramujos e lesmas se abrigavam na camada de musgo que o fixava ao chão.Pardais e andorinhas, pousando-lhe nas bordas lisas, vinham mirar-se em suas águas. A avó providenciava para que o pote jamais ficasse vazio.No inverno era mais fácil: a chuva do beiral fazia-o transbordar.Mas no verão tornava-se necessário despejar-lhe dentro vários cântaros, um para cada dia de estio. Ao relento, espectador de todas as estações, aparava moedas de sol, estilhaços de relâmpagos, farrapos de neve, pingos de orvalho e lua cheia. Servia para muitas coisas aquele pote:sua água regava as dálias e a salsa dos canteiros. Ali debruçada, tardes a fio  inventei cantigas. Ecoando cântaro a dentro, me parecia muito linda a minha voz, enquanto para mim mesma cantava, sentindo pulsar nas têmporas o coração, o cheiro do barro molhado e as cintilações dos astros guardados lá no fundo me entontecendo. Ao verter a alma naquele caleidoscópio de água cristalina, sem saber estava descobrindo a poesia.

                                                        Maria de Lourdes Hortas

(texto extraído da novela Diário das Chuvas, cap.III. Editora Bagaço, Recife/1995)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

ACERCA DO LIVRO SOLIDÕES DA MEMÓRIA DE DALILA TELES VERAS




  a memória da infância
 é a memória possível
 ( e só à poesia cabe recriar)
             
             Dalila Teles Veras
                                                                                       

Dalila Teles Veras nasceu na Ilha da Madeira em 1946, mas veio para o Brasil, acompanhando a família aos onze anos de idade. Atualmente vive em Santo André - SP. Sem dúvida, trata-se de uma das  mais significativas  escritoras da literatura  lusófona contemporânea, sobretudo porque, sendo imigrantes, pertence à literatura de duas pátrias.
Pela  Alpharrabio Edições, que comanda,   publicou recentemente (  2015)  o livro Solidões da Memória, onde está patente a  condição de quem, como ela muito bem diz nas anotações finais,” ter duas pátrias é como estar em permanente estado de exílio”. 
O título do livro foi inspirado por  um verso de Raul Bopp , citado nas epígrafes iniciais: Saudade é uma revivescência/Solidões da Memória/ coisas que ficaram do outro lado do mar.  
Além do poeta modernista, muitas das afinidades literárias da autora desfilam nas epígrafes  que abrem todos os seus poemas: Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Guimarães Rosa, Drummond, e tantos  outros altíssimos nomes. Ao nos revelar os padroeiros  da sua poesia, Dalila confirma que todos os poetas se constroem  não só da sua vocação e sensibilidade, mas de tudo o que leem e vão absorvendo, conscientemente ou não, ao longo do seu itinerário existencial.
Neste memorial, Dalila Teles Veras dá relevo  ao mundo da infância, lugar de impossível regresso:
O regresso
(ainda que da memória seja
o mergulho
vertical e fundo)
é paz impossível.
(in  A Ilha à minha porta amarrada)
 Forte e densa, tecida com a   exatidão das palavras essenciais,  assim é a poesia de Dalila Teles Veras, de contido sentimento , como contida foi a sua Educação pelo silêncio (pg. 23):  
“Rosto vincado/palavras poucas/a avó (...) em silêncio(...) 
as palavras inauditas(...)
em silencio, celebrávamos/o pacto de sangue/
 na pedra firmado, código/para enfrentar sortilégios.”
Esse código de silencio, para enfrentar sortilégios me parece ser a chave da poesia de Dalila Teles Veras. Escassez descrita no poema do mesmo título:
consumo escasso
diversão escassa
existir escasso (...)

Ecos de escassez que , de resto, marcam a sua escrita:
 (...) Na austeridade da arca
 a casa
 reduzida ao essencial.
(in  Bagagem )

No final do livro Dalila nos revela a sua Caderneta de Anotações, datadas de maio de 2012, por ocasião de uma viagem à Ilha da Madeira. Ali encontramos certamente muitas das matrizes dos poemas de “Solidões da Memória”. Todavia, mais do que nessas breves anotações, sentimos  que os  “ rizomas”  da sua profunda  insularidade , ela os foi buscar  no inominável espaço onde guarda as cicatrizes e pegadas da sua história.
Recife, fevereiro, 2016
Maria de Lourdes Hortas
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 CONFIDÊNCIA DA MADEIRENSE
                                                           Dalila Teles Veras
                                      
                                      Alguns anos vivi em Itabira.
                                        Principalmente nasci em Itabira.
                                        Por isso sou triste,
                                        orgulhoso: de ferro.
                                                   Carlos Drummond de Andrade
alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(de solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar

da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
                             rejeita

a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
                    e das vertigens
encordoamento
       do que não parecia lembrado
                     mas é
a memória do que não foi
                   mas poderia
e sequer dói