quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016
DIÁRIO DAS CHUVAS
Havia um pote de barro no quintal da infância. Da altura dos meus seis anos, sua boca media-me a circunferência da cabeça. Caramujos e lesmas se abrigavam na camada de musgo que o fixava ao chão.Pardais e andorinhas, pousando-lhe nas bordas lisas, vinham mirar-se em suas águas. A avó providenciava para que o pote jamais ficasse vazio.No inverno era mais fácil: a chuva do beiral fazia-o transbordar.Mas no verão tornava-se necessário despejar-lhe dentro vários cântaros, um para cada dia de estio. Ao relento, espectador de todas as estações, aparava moedas de sol, estilhaços de relâmpagos, farrapos de neve, pingos de orvalho e lua cheia. Servia para muitas coisas aquele pote:sua água regava as dálias e a salsa dos canteiros. Ali debruçada, tardes a fio inventei cantigas. Ecoando cântaro a dentro, me parecia muito linda a minha voz, enquanto para mim mesma cantava, sentindo pulsar nas têmporas o coração, o cheiro do barro molhado e as cintilações dos astros guardados lá no fundo me entontecendo. Ao verter a alma naquele caleidoscópio de água cristalina, sem saber estava descobrindo a poesia.
Maria de Lourdes Hortas
(texto extraído da novela Diário das Chuvas, cap.III. Editora Bagaço, Recife/1995)
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o seu lirismo está impregnado em tudo que a senhora faz:no poema, na pintura e na prosa.
ResponderExcluira artista Maria de Lourdes Hortas é gigantemente poética!
ResponderExcluirEste fã é muito valioso. Obrigada, amigo, poeta José Terra.
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