Em 1965, depois de concluir o
curso de Direito pela UFPE, parti para Lisboa, a fim de receber o prêmio do
Secretariado Nacional de Informação pelo meu primeiro livro, Aromas
da Infância, publicado pelas Edições Panorama.
Entretanto, já que estava em
Portugal, decidi viajar a Trás -os- Montes, para visitar minha avó paterna.
Fiz uma pequena mala, com apenas o necessário para três dias. A
viagem foi cheia de peripécias. Na
estação de Santa Apolônia peguei o comboio matinal com destino ao Porto. Lá , tive que descer e apanhar outro trem,
desta vez até a cidade da Régua. Para colocar e tirar a mala do bagageiro, que
eu não alcançava, tinha de pedir ajuda. O meu sotaque trazia bom humor aos
cavalheiros , que sorriam e me socorriam.
Na Régua comprei bilhete para Vila Real, entrando num comboio pequenino, Maria Fumaça autêntico, com bancos
rangentes, de estrutura em ferro e almofadas altas, cobertas com panos bordados
nas cabeceiras. Sentei-me ao lado de um jovem, agasalhado
na tradicional capa negra de estudante.
Logo soube que cursava Direito em Coimbra e ia passar uns dias em casa : desta
vez não tive a mínima dificuldade com a minha pequena mala.
Chegando a Vila Real,
procurei um táxi e logo cheguei à
aldeia de Tojais, terra do meu pai. Avó Felicidade, já avisada da minha chegada, tinha preparado
um quarto para mim e recebeu-me com expressão indefinida, entre desilusão e alegria. A
decepção, disse-me ela mesma depois, devia-se à minha apresentação simples e
despojada. Era fim de abril, eu usava um vestido de lã de xadrez, que minha mãe
fizera, depois de, no Recife, dar voltas à cidade procurando um tecido quente. Em Lisboa eu havia comprado um casaco esporte, de feltro verde escuro, muito quentinho.Sentia-me bem
dentro dele, era o meu melhor agasalho.
Calçava botas de cano curto e salto
baixo. Não usava joias, apenas o anel de formatura e talvez um fiozinho de ouro
no pescoço, invisível debaixo da roupa.
Vovó esperava uma senhora
doutora à moda portuguesa, vestida de saia
e casaco, como lá se dizia, um tailleur clássico, com blusa
de seda, colar de pérolas, casaco comprido, saltos altos, brincos nas orelhas,
enfim, uma dama de impor respeito, à antiga moda portuguesa.
Eu contrariava esse figurino.
Daí a desilusão da família da aldeia, já esperando os comentários desairosos da
vizinhança.
O marido da tia Alzira, única
irmã do meu pai , foi muito simpático, e os meus primos, Fernando mais ou menos
da minha idade e OSdois mais novos, Luís e Francisco, cercaram-me sempre, do início ao fim da minha visita. Havia três
primas mocinhas, Prazeres, Conceição e uma xará, Lourdes, mas essas ficavam por
casa, não me acompanhavam aos passeios pelos campos naqueles radiosos e
ensolarados dias de primavera.
O ponto alto da visita foi o domingo. Havia
uma festa no povoado, com bailarico na eira. Os meus primos apressaram-se em me
convidar. Foi uma tarde inesquecível, dancei sem parar, não só com os primos, mas com outros rapazes da aldeia, que disputavam entre si uma dança com a menina do
Brasil. De volta a casa, minha avó não se conteve: uma senhora doutora, que não
se dava o valor, a dançar na eira com lavradores…Falou também da minha
aparência simples e imprópria na minha condição… E foi aí que eu soube da desilusão que lhe
dera à chegada.
Voltei para Lisboa no dia
seguinte, refazendo todo o percurso. Ao me despedir de vovó Felicidade, já com
a minha bagagem na mala do táxi, ela lembrou-se de me oferecer uma sacola
de rede, dessas que então se usavam, rede de náilon, e ,dentro dela, um pacote de papel com nozes .
- Não precisa se incomodar , Vovó…
-Leva filha, são ótimas essas
nozinhas…
Como recusar?
Na estação de Vila Real fui
informada que o comboio para a Régua estava atrasado. Eram cerca de dez horas e o trem só chegaria
por volta do meio dia. Sentei-me à espera num banco da gare, a malinha ao lado,
a bolsa a tiracolo e o bendito pacote das nozes na mão. Estava frio. Depois de
alguma relutância, pois nunca entrara sozinha num restaurante, decidi ir até o
Café da estação, para matar o tempo e tomar
alguma coisa que me aquecesse, talvez um
chocolate quente … Entrei devagar,
querendo passar despercebida, o que não consegui, pois a porta rangeu e não
havia uma única mulher no recinto. Todos os homens se voltaram , olhando-me sem a mínima cerimônia. Sentei-me na mesa mais próxima da porta, ainda cheia de cautelas, levantando
a cadeira,para não a arrastar, pousando
a mala, tudo com o maior cuidado, para não chamar a atenção. Foi aí que,
pousando o pacote das nozes na cadeira ao lado da minha, o dito cujo rebentou, espalhando nozes para
todos os lados. Foi uma desordem geral, todos abaixados, nozes vão, nozes veem,
e entregando-as para mim, e eu morta de
vergonha, tentando ajeitar a pequena sacola, enfim, uma cena de comédia, que
nunca esquecerei.
(Capítulo do meu
livro de memórias As Casas do Destino,
ainda não concluído.)
E nenhum diretor de cinema para ler essas memórias?
ResponderExcluirEscrever bem é escrever assim: bem simples. E a gente enxerga tudo. Maravilha essa diferença de culturas - traço marcante em tudo o que você escreve em prosa. Quanto dela ainda existe? Beijos. Luis Manoel Siqueira.
Querida Lourdinha,
ResponderExcluiradoreio seu introito.Simples e despojado , como sempre, o que nos da' uma leitura muito agrada'vel, acompanhando as suas aventuras naquela terra chaia de gente preconceituosa.
E nao` julgue que mudaram muito desde entao`; o ha'bito continua a fazer o monge.Lol
Agora fico de a'gua na boca, esperando toda a prosa, ate' oremos.
Grande beijinho com saudades.Maria Fernanda Paes Moreira