sexta-feira, 3 de agosto de 2012

VISITA À CASA DA MINHA AVÓ FELICIDADE



Em 1965, depois de concluir o curso de Direito pela UFPE, parti para Lisboa, a fim de receber o prêmio do Secretariado Nacional de Informação pelo meu primeiro livro,  Aromas da Infância, publicado pelas Edições Panorama.
Entretanto, já que estava em Portugal, decidi viajar a Trás -os- Montes, para visitar minha avó paterna.
Fiz uma pequena mala,  com apenas o necessário para três dias. A viagem  foi cheia de peripécias. Na estação de Santa Apolônia peguei o comboio matinal com destino ao Porto.  Lá , tive que descer e apanhar outro trem, desta vez até a cidade da Régua. Para colocar e tirar a mala do bagageiro, que eu não alcançava, tinha de pedir ajuda. O meu sotaque trazia bom humor aos cavalheiros , que  sorriam e me socorriam. Na Régua comprei bilhete para Vila Real, entrando num comboio pequenino, Maria Fumaça autêntico, com bancos rangentes, de estrutura em ferro e almofadas altas, cobertas com panos bordados nas cabeceiras.  Sentei-me ao lado de um jovem, agasalhado na tradicional capa negra de estudante. Logo soube que cursava Direito em Coimbra e ia passar uns dias em casa : desta vez não tive a mínima dificuldade com a minha pequena mala.
Chegando a Vila Real, procurei um táxi   e logo cheguei à aldeia de Tojais, terra do meu pai. Avó Felicidade,  já avisada da minha chegada, tinha preparado um quarto para mim  e recebeu-me com expressão  indefinida, entre desilusão e alegria. A decepção, disse-me ela mesma   depois,  devia-se à minha apresentação simples e despojada. Era fim de abril, eu usava um vestido de lã de xadrez, que minha mãe fizera, depois de, no Recife, dar voltas à cidade  procurando  um tecido quente. Em Lisboa eu havia  comprado um casaco esporte, de feltro  verde escuro, muito quentinho.Sentia-me bem dentro dele, era  o meu melhor agasalho. Calçava  botas de cano curto e salto baixo. Não usava joias, apenas o anel de formatura e talvez um fiozinho de ouro no pescoço, invisível debaixo da roupa.
Vovó esperava uma senhora doutora à moda portuguesa, vestida  de saia e casaco, como lá se dizia, um  tailleur clássico, com   blusa de seda, colar de pérolas, casaco comprido, saltos altos, brincos nas orelhas, enfim, uma dama de impor respeito, à antiga moda portuguesa.
Eu contrariava esse figurino. Daí a desilusão da família da aldeia, já esperando os comentários desairosos da vizinhança.
O marido da tia Alzira, única irmã do meu pai , foi muito simpático, e os meus primos, Fernando mais ou menos da minha idade e  OSdois mais novos, Luís e Francisco,  cercaram-me sempre, do início ao fim da minha visita. Havia três primas mocinhas, Prazeres, Conceição e uma xará, Lourdes, mas essas ficavam por casa, não me acompanhavam aos passeios pelos campos naqueles radiosos e ensolarados dias de primavera.
 O ponto alto da visita foi o domingo. Havia uma festa no povoado, com  bailarico  na eira. Os meus primos apressaram-se em me convidar. Foi uma tarde inesquecível, dancei sem parar,  não só com os primos, mas  com outros rapazes da aldeia, que  disputavam entre si uma dança com a menina do Brasil. De volta a casa, minha avó não se conteve: uma senhora doutora, que não se dava o valor, a dançar na eira com lavradores…Falou também da minha aparência simples e  imprópria  na minha condição…  E foi aí que eu soube da desilusão que lhe dera  à chegada.
Voltei para Lisboa no dia seguinte, refazendo todo o percurso. Ao me despedir de vovó Felicidade, já com a minha bagagem na mala do táxi, ela lembrou-se de me oferecer  uma sacola  de rede, dessas  que  então se usavam, rede de náilon, e ,dentro  dela, um pacote de papel com nozes .
- Não precisa  se incomodar , Vovó…
-Leva filha, são ótimas essas nozinhas…
Como recusar?
Na estação de Vila Real fui informada que o comboio para a Régua estava atrasado.  Eram cerca de dez horas e o trem só chegaria por volta do meio dia. Sentei-me à espera num banco da gare, a malinha ao lado, a bolsa a tiracolo e o bendito pacote das nozes na mão. Estava frio. Depois de alguma relutância, pois nunca entrara sozinha num restaurante, decidi ir até o Café da estação, para  matar o tempo e tomar alguma coisa que me aquecesse,  talvez um chocolate quente   … Entrei devagar, querendo passar despercebida, o que não consegui, pois a porta rangeu e não havia uma única mulher no recinto. Todos os homens se voltaram , olhando-me  sem a mínima cerimônia.  Sentei-me na mesa mais próxima  da porta, ainda cheia de cautelas, levantando a cadeira,para não   a arrastar, pousando a mala, tudo com o maior cuidado, para não chamar a atenção. Foi aí que, pousando o pacote das nozes na cadeira ao lado da minha, o  dito cujo rebentou, espalhando nozes para todos os lados. Foi uma desordem geral, todos abaixados, nozes vão, nozes veem, e entregando-as  para mim, e eu morta de vergonha, tentando ajeitar a pequena sacola, enfim, uma cena de comédia, que nunca  esquecerei.

(Capítulo do  meu livro de memórias As Casas do Destino, ainda não concluído.)













2 comentários:

  1. E nenhum diretor de cinema para ler essas memórias?
    Escrever bem é escrever assim: bem simples. E a gente enxerga tudo. Maravilha essa diferença de culturas - traço marcante em tudo o que você escreve em prosa. Quanto dela ainda existe? Beijos. Luis Manoel Siqueira.

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  2. Querida Lourdinha,
    adoreio seu introito.Simples e despojado , como sempre, o que nos da' uma leitura muito agrada'vel, acompanhando as suas aventuras naquela terra chaia de gente preconceituosa.
    E nao` julgue que mudaram muito desde entao`; o ha'bito continua a fazer o monge.Lol
    Agora fico de a'gua na boca, esperando toda a prosa, ate' oremos.
    Grande beijinho com saudades.Maria Fernanda Paes Moreira

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