quarta-feira, 24 de maio de 2017

Lampejos poéticos de Maria de Lourdes Hortas









Lampejos poéticos de Maria de Lourdes Hortas *


                                    por Fernando Braga, poeta maranhense 
            

Maria de Lourdes Hortas** é uma escritora portuguesa de boa cepa, que, sempre, generosamente, em meio às boas notícias, remete para os meus pensares, a revista “Encontro”, órgão informativo e literário do Gabinete Português de Leitura, de Pernambuco, publicação que sensivelmente dirige fazendo-a distribuir para os países de língua portuguesa. Essa revista, a qual já tive a oportunidade de publicar um excerto de meu ensaio sobre Bocage, o maior sonetista ibérico do século XVIII, já me proporcionou, também, a oportunidade de sentir, por outros ângulos, as genialidades de Camilo, de Eça, de Antônio Nobre, de Mário de Sá-Carneiro, de Miguel Torga e de tantos outros luminares de Portugal continental, assim como poetas modernos de Angola, Moçambique, Macau, Timor, São Tomé e Príncipe, juntamente com uma gama de intelectuais de primeira linha da Ilha da Madeira.
Estes lampejos sobre a poética (muitas vezes em prosa) de Maira de Lourdes Hortas foge, desta vez, às regras epistolares - e que já vão longe – para alguns mergulhos não tão densos, como mereciam, sobre o alimento espiritual dessa minha estimada amiga, colocação que aqui, obviamente, não vem ao caso.
No clarear de uma prosa ou de um verso dessa escritora, corporifica-se em epígrafe, o constelado Fernando Pessoa, através dos sentimentos de Ricardo Reis, quando na abertura de certas confissões, Maria de Lourdes diz que aquelas são “como as pedras na orla dos canteiros”. Falo do livro da minha amiga lusa “Adeus, Aldeia”, editado em Vila da Trofa (Portugal), que além de ser um belíssimo livro no aspecto gráfico (e lá se trabalha muito bem neste ofício), é um sentimental depoimento de quem sente ficar a distância do velho cais de pedras, ou das areias de ouro do Tejo, amores aldeãos como aqueles contados pela maioria dos autores lusitanos quando saem de suas freguesias, pedaços de vidas ainda a se edificar, e o aconchego e costumes de uma aldeia, como talvez seja São Vicente da Beira (Província de Castelo Branco), onde nasceu Maria de Lourdes Hortas, emigrada um dia para o Brasil, desembarcando em Recife, para ser outorgada como a amais pernambucana das portuguesas nas terras de Gilberto Freyre e de João Cabral de Melo Neto.
Há tempos, Maria de Lourdes mandou-me o livro “Diário das Chuvas”, uma publicação das edições “Bagaço” (Recife 1995), prêmio Fernando Chinaglia, concedido pela União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 1981. É o segundo momento de uma trilogia, como ela própria explica, a envolver uma trama bem-aventurada entre Gabriel e Tâmara. “Ele já me deitou por terra e suas mãos prendem-me os pulsos, agora sei o que é plenitude”. Ou ainda: “Lembrei-me do livro onde um grego dizia que as mulheres, para estarem felizes, precisam sentir-se desejadas”. O livro apesar de escrito em bela prosa tem uma construção poética, que a bem da verdade, há tempos não lia: “Minhas semanas têm apenas os dias em que te vejo”. É por aí!
Depois recebi a “Dança das Heras”, uma também belíssima publicação lisboeta, quase que artesanal, produzida nas oficinas do editor e também artista José Manuel Capêlo. Este livro prendeu-me o tempo. No primeiro verso do poema “Revoada”, de Maria de Lourdes é de um alcance extraordinário, quando diz de uma maneira simples e profunda: “Em alguma praça de mim um sino para reinventar um tempo antigo”, para compor em síntese o que passou, com toda uma força criadora: “Faz-de-conta que o tempo é uma varanda”. Eis tudo!
            Como boa portuguesa, a sentir as correntes marítimas nas veias, e no coração uma carta de marear, Maria de Lourdes Hortas simboliza como órfã “de um sonho suspenso”, o “azul além do azul/ águas mais fundas/ um mar dentro do mar.”.
 Já ditos no início, dos sentimentos que ficam a distância do velho cais de pedras, ou nas areias de ouro do Tejo, Maria de Lourdes em “Acto de Fé” (sic), ratifica minha assertiva quando exclama saudosa que ficou para trás o “êxtase da infância esperando-me na esquina”.
            Enquanto Fernando Pessoa fez imortalizar Alberto Caeeiro, um de seus alteregos, ao dizer “que o rio da minha aldeia não faz pensar em nada”, a minha parceira de sentimentos e de ofício, se é que posso chamá-la assim, burila docemente um “Desocultar as Fontes” que “se espreguiça um rio primitivo que recita as lendas da construção da aldeia’. Uma coisa é pensar e outra é sonhar. Como aqui foram envolvidos dois dos mais queridos heterônimos do imortal poeta de “Mensagem”, com Caeeiro fica a primeira premissa: “Há metafísica bastante em não pensar em nada”, justificando que “o espelho reflete certo; não erra porque não pensa. Pensar é essencialmente errar. Errar é essencialmente estar cego e surdo”. Com esses versos de Maria de Lourdes, diríamos que há metafísica bastante em idear sonhos. Para nos socorrer depressa nessa sentença, evocamos Ricardo Reis para a segunda proposição, na qual enfatiza: “Severo narro. Quando sinto, penso. Palavras são idéias”. Simplesmente um paradoxo provocado ou um enlace de idéias contrastantes?
E ainda sobre o criador de “Odes”, com o qual abrimos este dedo de prosa, por força das confissões da escritora, quando o chama a dizer: “das pedras na orla dos canteiros”, deixaremos para que siga “rumo aos acasos do sol”, o verso seguinte àquele, em que trocamos, por conveniência de fecho destes apontamentos, apenas um advérbio por outro, com o grifo nosso: “O fado nos dispõe e por cá ficamos”.
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* Publicado in Opinião, Jornal O Estado do Maranhão, 13.11.97

**Maria de Lourdes é a diretora da Revista “Encontro”, órgão de divulgação do Gabinete Português de Leitura de Pernambanco [Recife], onde tenho a honra de ser um dos colaboradores. Para minha grande honra, foi Maria de Lourdes Hortas que escreveu a contracapa do meu livro de poemas “O Puro Longe”, publicado em 2012.        


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