O V IMPÉRIO PORTUGUÊS: DE CAMÕES A FERNANDO PESSOA
Aquele movimento hierético da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir
das palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro
vocálico em que os sons são cores ideais
- tudo isso me toldou o instinto como uma grande emoção política.(...) Minha
pátria é a língua portuguesa.
Palavras de Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa, revelando o seu
alumbramento, incontida admiração pelo
Padre António Vieira, depois de ter lido a sua História do Futuro.
No ano em curso, o mundo lusófono presta homenagem a
Fernando Pessoa, pela passagem dos 80 anos da sua morte e também pelos 100 anos
de publicação do primeiro número da revista Orfeu, de cujo grupo Pessoa
participou ativamente, como idealizador e colaborador.
Assim, é mais do que justo, darmos a Fernando Pessoa um lugar especial em nossa festa, porque tanto Camões quanto Pessoa são símbolos da identidade nacional
portuguesa.
A epigrafe que escolhi, lida no início da minha breve fala, trás uma frase de Fernando Pessoa, que muitas vezes já
ouvimos: “A minha pátria é a língua portuguesa.” Segundo o ensaista João Gaspar Simões,
biógrafo do poeta, “ a primeira tentativa de naturalização de Pessoa adveio
após a leitura do Pe. Vieira. Através da História
do Futuro, tomou ele conhecimento dos vaticínios anunciados por um poeta
popular, Bandarra, o sapateiro de Trancoso, segundo o qual a Portugal estava
reservada a missão de realizar o V Império do Mundo.
Fernando Pessoa passou grande parte da sua infância e
juventude na África do Sul, para onde foi levado, aos oito anos, acompanhando a
sua família , e onde recebeu toda a
base da sua educação e cultura, chegando a ter mais familiaridade com a língua
inglesa, na qual escreveu os primeiros poemas.
Ainda segundo Gaspar Simões: ao se deparar com a obra de
Vieira, “ foi como se Fernando Pessoa tivesse sido levado a associar, na mesma idéia ,
o seu sentimento patriótico e o sentimento de redenção da pátria, que ele
sentia profundamente abatida.”
Também os Lusíadas de
Camões, tocaram profundamente a alma do jovem poeta que, regressando à pátria,
buscava conhecê-la e reconhecê-la como sua.
Em
1922, apenas com 24 anos, ele escreveu na revista Águia, profetizando sobre um poeta vindouro, que encarnaria o auge da poesia. E declarou: Supra- Camões lhe chamaremos...
Quatro séculos separam Luis Vaz de Camões de Fernando
Pessoa. O grande vate dos LUSÍADAS nasceu em Lisboa, no século XVI, ano de 1527, em
pleno do renascimento europeu, fase histórica que reacendeu as referências da Antiguidade Clássica. Grandes
mudanças culturais e sociais estavam em curso.
Portugal havia
conquistado a sua soberania, após as
lutas contra os mouros e Castela. Dotados de espírito aventureiro , os
portugueses tinham desvendado os mistérios dos oceanos, lutando bravamente contra as
forças hostis da natureza, abrindo rotas de comércio e expandindo as fronteiras
do mundo.
Estava portanto preparado o cenário para ser escrita a
grande epopéia nacional. E foi Camões quem
tomou para si o encargo de enaltecer os feitos da sua gente.
Da sua infância, não há qualquer registro. Sabe-se apenas
que nasceu numa família de pequena aristocracia. Quanto à sua juventude, tudo
leva a crer que, pela forma como pôde executar a sua obra prima,certamente
esteve em Coimbra, já então meca da cultura portuguesa.
Camões dominava o latim e o espanhol; conhecia os poetas da literatura clássica e estava a
par do que acontecia literariamente na
Itália e na Espanha.
Jovem galante, frequentou a corte de D. João III,
encantando o paço com a sua poesia lírica, envolvendo-se, segundo reza a
tradição, em romances com algumas damas
. Supõe-se que, por conta de um desses capítulos amorosos, partiu para
a África como militar e lá perdeu um olho numa batalha. Viajante
contumaz, esteve no Oriente , onde enfrentou uma série de peripécias e
adversidades.
Nesse clima
de instabilidade e aventura compôs a
obra que o imortalizou: no íntimo do
grande poeta, contra tudo e contra todos, o que pulsava era a poesia. Nos
Lusíadas, conseguiu conciliar, com
espantosa harmonia, a sua erudição clássica com a sua experiência de vida. Tanto
assim que Jorge de Sena afirmou : “ nada é arbitrário em Os Lusíadas.”
Dominando com maestria todos os recursos da
língua e da versificação, Camões realizou
não só a maior epopéia portuguesa
, mas uma das maiores epopeias do Renascimento.
Quando, em
1570, regressou a Lisboa, apresentou-se
no Paço e recitou os LUSÍADAS a D. Sebastião, ainda adolescente. Entusiasmado,
o jovem monarca determinou que a epopeia fosse publicada - o que ocorreu em 1572 - e que fosse concedido a Luís de Camões,
cavaleiro fidalgo da sua Casa, em paga dos seus serviços prestados na Índia , uma
pensão vitalícia. Ao que tudo indica, tal pensão não foi muito generosa, pois, segundo
os seus biógrafos, o poeta viveu com
dificuldades e encerrou os seus
dias, no dia 10 de junho de 1580, em extrema pobreza.
O imortal
cantor das glórias lusitanas foi um
renovador da língua portuguesa. Em sua
epopeia, com ufanismo declarou:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram:
Que eu canto o peito ilustre
Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
...........................................................
Cesse tudo o que a Musa antiga canta
Que outro valor mais alto se
alevanta.
O
reconhecimento d e Camões e sua obra como emblema da nação portuguesa vem de
longe. Já em 1580, durante a monarquia
dual de Filipe II , o monarca espanhol achou
por bem prestigiar os súditos
portugueses, mandando traduzir Os
Lusíadas para o castelhano.
No século
XIX, Camões volta a alcançar grande destaque: Os Lusíadas passaram por
várias releituras, sendo mitificados por Almeida Garrett e Antero de Quental, expoentes
máximos do romantismo. E, por
ocasião do tricentenário da sua morte,
a 10 de junho de 1880, quer em Portugal,
quer no Brasil, foram lhe prestadas grandes homenagens. Portugal debatia-se entre a legitimidade da
monarquia e as revindicações democráticas. Camões – conforme referem os jornais
da época- foi apresentado como símbolo de revivescência do seu país, tornando-se
síntese da nacionalidade.
Mais tarde,
durante o Estado Novo ( ou salazarismo), Camões volta à cena: desta vez, tanto
o vate quanto os Lusíadas são usados como elementos propagandísticos.
No entanto,
só depois de passados três anos sobre a
chamada Revolução dos Cravos, Camões foi associado publicamente às Comunidades
Portuguesas, tornando-se o 10 de junho, O Dia de Camões , de Portugal, e das Comunidades Portuguesas. A nova
ideologia foi reafirmada com a transformação do Instituto de Língua e Cultura
Portuguesa em Instituto Camões.
Paralelamente,
criou-se um novo
sentido de identidade nacional,
englobando os muitos emigrantes
portugueses espalhados pelo mundo.
Como já disse neste texto, longos quatro séculos de
história e literatura separam Fernando Pessoa de Camões.
Ao apagar
das luzes do século XIX , a 13 de junho
de 1888, no ano Largo de São Carlos em Lisboa, nasceu aquele que viria a ser o
mais universal poeta português: FERNANDO
ANTÓNIO NOGUEIRA PESSOA . Considerado pelo crítico literário Harold
Bloom como o “Witman renascido “, foi
incluído por ele entre os 26 melhores escritores da civilização
ocidental, não apenas da literatura portuguesa, mas também da inglesa.
Tanto Camões, quanto Pessoa, se preocuparam com a
identidade nacional. Quando Fernando Pessoa surgiu no cenário la literatura
portuguesa, na segunda década do século
XX, a poesia camoneana permanecia viva. Pessoa se deu conta disso e, consciente
do seu próprio potencial, sonhou ser ele o Supra-Camões.Muitos estudiosos pessoanos têm afirmado que a sua obra foi uma tentativa de superar a obra
camoneana. Tal intenção é visível no
único livro que o poeta publicou em vida:
MENSAGEM ( 1934), um ano antes da sua morte.
Existirá alguma semelhança entre OS LUSÍADAS e a MENSAGEM?
Certamente a semelhança incontestável reside no fato de as duas obras enaltecerem e glorificarem os
fatos mais significativos dos descobrimentos, capítulo maior na História
Portuguesa.
Quando Camões escreveu a sua Epopéia, haviam-se passado
apenas 50 anos sobre a viagem de Vasco da Gama. Tendo se apercebido da importância daquele feito , o grande
poeta centralizou-o na sua narrativa, aproveitando o ensejo para contar toda a História de
Portugal, engrandecendo os vultos principais e outros feitos heróicos dos seus compatriotas.
Por seu lado,
Pessoa, sentia-se decepcionado com a realidade portuguesa do seu tempo: a decadência da monarquia e os
novos ideais republicanos. No íntimo,
visionariamente, procurava uma missão,
que pudesse levá-lo a construir novos tempos. Nesse sentido, chegou a
escrever vários textos, entre os quais o
opúsculo “Como Organizar Portugal” onde
abordou o decadentismo da época. Segundo o Prof. Alfredo Antunes, “tal
trabalho é um espelho das suas preocupações teóricas para justificar a
necessidade de um novo D. Sebastião ou super- Camões, que venha estabelecer o
Quinto Império espiritual.”
Em 1917, pela voz de Álvaro de Campos, Pessoa anuncia : “ O Quinto Império, o futuro de
Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo,
nas trovas de Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é
sermos tudo.Quem, que seja português, pode viver na estreiteza de uma só
personalidade, de um só nação, de uma só fé?”
A MENSAGEM é uma versão moderna , espiritualista e
profética dos Lusíadas. Contendo poemas
de diferentes datas,foi concebido como um
grande Poema. Segundo o prof.
Alfredo Antunes , “ A cadeia de heróis
que vão passando pela primeira parte desse seu “ canto maior” a Portugal,
arranca da História cada uma das
virtudes que são necessárias para caldear uma raça e um povo .(...) Viriato, Conde D. Henrique, D. Tareja, D. Afonso Henriques,
D. Dinis, D. João o Primeiro, D. Filipa de Lencastre são – para usar a expressão de David Mourão Ferreira – “ os seculares motivos “ (...) E assim, a cada herói do passado, faz a
súplica necessária para o Portugal do futuro.”
Construida sobre uma estrutura de simbolos e mitos, a Mensagem
convoca os portugueses a prosseguirem na sua missão histórica, sem jamais esquecer a essencia da sua Pátria.
Na segunda parte de Mensagem
– Mar Português – Pessoa reconhece
a missão dos heróicos navegadores
portugueses, que com audácia, sofrimento e sacrifício, construiram o destino de
uma supra-nação.E escreveu um dos mais belos poemas da Mensagem:
Ó mar salgado,
quanto do teu sal
São lágrimas de
Portugal!
Por te
cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos
em vão rezaram!
Quantas noivas
ficaram por casar
Para que fosses
nosso, ó mar!
Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é
pequena.
Quem quer passar
além do Bojador
Tem que passar
além da dor.
Deus ao mar o
perigo e o abismo deu,
Mas nele é que
espelhou o céu.
Hoje, o V
IMPÉRIO que Pessoa sonhou é a língua portuguesa, a pátria que ele tanto reverenciava. Não foram apenas os
audazes navegadores que implantaram a língua portuguesa pelo mundo. Dessa feito participaram também todos os emigrantes que,
ao longo dos séculos, foram se espalhando pelo globo, deixando a cultura
portuguesa nos seus países de acolhimento.
O site do
Observatório da Língua Portuguesa ,
aponta para 244. 392 milhões o número de falantes de
português em todo mundo, sendo a nossa, a quarta língua mais falada,
atrás do mandarim, do espanhol e do inglês . Hoje o idioma português é falado nos cinco continentes, como
língua oficial de 9 países e 14 regiões.
Quero encerrar as
minhas palavras, homenageando os emigrantes anonimos, que deixaram a sua pátria
para sempre, repetindo um dos mais
belos versos de Fernando Pessoa:
´´O mar salgado,
quanto do teu sal, são lágrimas de Portugal?
Recife,
10/6/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário