Conhecemo-nos na fila do ônibus, pela manhã. Ele ia para o colégio de rapazes, e eu para o de meninas. Eu terminava o curso ginasial, tinha catorze anos. Ele, um pouco mais velho, certamente cursava o científico, era baixinho, mas lembrava Robert Wagner, meu galã de cinema preferido.
Todas as manhãs, o encontro fugidio de nossos olhos descompassava-me o coração. Até que , numa manhã de maio, em meio à chuva, já dentro do ônibus, ambos ensopados, ele, num rasgo de coragem, cedeu-me o lugar, para que eu me sentasse. Foi como se um sol radiante entrasse pela janela! Sentei-me, a bolsa dos livros no colo. Percebi que ele procurava ver o meu nome gravado na pasta. Leu em voz alta: Maria de Londres?
- Não, de Lourdes.
Todo o silencio desabava sobre o mundo como cacos de cristal e arco-íris.
E o nome dele? Não tive coragem de perguntar. Era assim naquele tempo. As meninas tinham recatos cor de rosa, que hoje parecem impossíveis e inexplicáveis.
Depois do episódio do ônibus, veio o segundo capítulo: todas as tardes o rapazinho passeava de bicicleta em frente à minha casa, dava-me adeus e desaparecia mais à frente. Morávamos então num sobradinho com varanda. Por volta das quatro horas, depois do banho, com o cabelo ainda molhado, eu gostava de ficar na sacada, qual musa medieval, pegando brisa e olhando o céu, à espera da lua, ou das primeiras estrelas. Fui percebendo que, todos os dias, no mesmo horário, ele surgia ao longe, saindo do quintal de uma casa no fim da rua. O ritual era sair de lá e subir a rua , passando em frente à minha casa e mais à frente dar a volta e regressar, entrando novamente no quintal , sumindo entre as árvores de onde viera. Isso, dias a fio, semanas... Numa dessas tardes, deteve-se um pouco sob a sacada, sorriu – tinha um sorriso luminoso! - e apontou para o cano da bicicleta, como se me convidasse para um passeio. Virei as costas, enfurecida, ofendidíssima : que ousadia!
Todavia continuava nosso lírico romance: às tardes, eu ficava na varandinha e ele passava, para lá e para cá. Nas manhãs , prosseguiam os breves e casuais encontros na fila do ônibus.
Até que veio junho , mês de muitas festas.
Meu pai achou que já era tempo de levar-me ao São João no Clube Português. Minha mãe ficou em casa, com minha irmã, porque , mais moça do que eu dois anos, ainda não podia frequentar festinhas noturnas. Naquela época havia tempo certo para tudo. Sem revolta, os rituais eram cumpridos.
Na festa, completamente deslocada, seguia o meu pai, que visitava as mesas de alguns amigos patrícios. Logo me arrependi de ter saído de casa. Afinal, para quê? Mas, de repente,tudo mudou: lá estava ELE, meu fã, como se dizia então. ( Hoje se chamaria paquera. Mas esse termo surgiu muito mais tarde.) Meu pai e eu estávamos descendo a escada, de mãos dadas, quando " aquele” menino passou no corredor, ao fundo da escadaria. Sorriu e fez um gesto, convidando-me para dançar. Tive vergonha de pedir ao meu pai. Confusa, fingi não entender o convite, olhei para o outro lado, não sei se aflita, feliz, ou infeliz...
E assim a festa foi passando por mim, até que os fogos espocaram e senti que o sereno da noite molhava o meu coração.
Poucos dias depois veio a festa de São Pedro, no mesmo Clube. Por ser à tarde , minha irmã pôde ir. Essa festa, sim, foi maravilhosa: passeávamos as duas em volta do salão de dança com algumas amigas do Colégio e, de repente, ELE chegou junto de mim.
Foi a primeira vez que dancei com um rapaz. Naquele tempo rapazes e meninas dançavam enlaçados, dança lenta, como diziam mais tarde os meus filhos, e hoje já nem sei se alguém dança assim. Ele tinha um hálito gostoso, cheiro de cigarro e chiclete de hortelã. Seu paletó era áspero. Pouco mais alto do que eu, seu queixo quase se apoiava na minha cabeça, podia sentir a forte respiração dele passando sobre o meu cabelo como brisa morna.
Minha mão , gelada, aos poucos foi aquecendo , e logo nossas mãos estavam escaldantes.
-Meu nome é Dilson Carlos.Está gostando da festa?
Não sei o que respondi. Ouvia-o, num sussurro, como se me falasse de muito longe:
- Faz tempo que a gente se olha...Gosto do seu jeito. A gente podia conversar mais vezes...
-Já estamos conversando, consegui responder.
-Quero dizer, como namorados.
Assustei-me com a proposta inesperada e também porque do outro lado do salão meu pai já nos procurava ( a mim e a minha irmã). Em alvoroço despedi-me. O mundo tinha mudado de cor.
Poucos dias depois a minha família foi convida para a festa de 15 anos da filha de um amigo do meu pai. Minha mãe fez-me um vestido especial, de cassa cor de rosa, com decote nas costas e um enorme laço na cintura, atado atrás.
Dilson Carlos foi a primeira pessoa que vi, mal cheguei ao portão. Dançamos toda noite. Arrepiei-me quando seus lábios roçaram suavemente a minha testa, na raiz do cabelo. Seria um beijo?
Ele perguntou-me: Então, pensou direitinho? Fiz que não entendi.( Era de bom tom se fazer difícil) . Ele insistiu: Estou perguntando se quer ser minha namorada...
Não dava mais para desconversar. - Está certo.
Marcamos para a quinta-feira, às quatro da tarde, quando eu voltasse da aula de piano.
Lembro-me bem: eu usava um vestidinho que eu mesma costurei, de xadrez , com uma gravata de fustão branco. (Tenho uma foto com esse vestido. Deve andar por aí, perdida em alguma gaveta).
Pedi instruções à minha mãe: como era namorar? Que tipo de conversa era a dos namorados? Minha mãe não se conteve, riu para valer, ora, minha filha, é uma conversa como outra qualquer...
Esperei o meu primeiro namorado, no primeiro encontro, à porta do sobradinho. Ele chegou muito arrumado, camisa bem passada, cabelo com brilhantina e o mesmo cheiro bom de chiclete de hortelã.
Olhamo-nos por uns momentos, em silencio, ambos sem jeito. Nesse tempo não havia o costume de amigos de sexo oposto se beijarem. Ansiosa para quebrar o gelo,, sugeri:
- Comece...
Dilson deu uma gargalhada. Eu também. Depois disse que tinha 17 anos e daí a um ano faria vestibular para medicina... não me lembro o que lhe contei de mim. Só sei que antes de meia hora de conversa já não tínhamos mais assunto. Então nos despedimos, marcando para nos vermos novamente na quinta-feira seguinte.
Muitos encontros se sucederam, até que ele pegasse na minha mão. Algum tempo depois completei 15 anos.Logo a seguir comemoramos seis meses de namoro. Dilson Carlos deu-me de presente uma gaiola com um sabiá. Só então aconteceu o nosso primeiro beijo de amor.
Querida amiga,
ResponderExcluirNão há mais namoros como antigamente. Que beleza de conto, que pureza a retratar as moiçolas e os "manéis" de antes; que beleza de estilo, simples e direto. Fiquei a pensar: omo um pássaro e um simples beijos são importantes na vida da gente. Lembrei-me de qundo também era rapazito. As festas eram chamadas de tertúlias e o clube era o Grêmio Lítero Recreativo Português, em São Luis. Parabéns! Fernando Braga.
"Her First Ball" de Katherine Mansfield. Foi o que a sua crônica me lembrou. Tem sabor de refrigerante Fratelli Vita de pêra - que saudade dessas coisas que nunca mais vamos provar de novo ! Já era tempo de minha amiga ter um blog ! Beijo sem canário mas com carinho.
ResponderExcluirLuis Manoel Siqueira